quinta-feira, 14 de outubro de 2010

tempo de alcance....mesmo que pela escrita!!


(mãos de Adélia - foto de Elaine) 

 Tempo de alcance

Eu não posso me submeter ao que o mundo poderia pensar. Escrever é um ato complexo, político, misterioso, filosófico e humanamente obscuro. Somos pais e mães de palavras vindas a Luz. Escrever é luminosidade.

Assim eu iniciaria um texto pra falar sobre Clarice, eu diria da sua força, da sua grandeza, da sua máxima e intensa sensibilidade, mas ela por si, delicada e astuta, já o fez. Se fez tão misteriosa essa mulher diva, que me encanta só o fato de falar dela.

Se eu tivesse a possibilidade de falar com ela, eu diria do prazer, mas também da caridosa alma que compartilhou esse mundo tão amplo. Na verdade pediria um abraço de cinco minutos, um abraço para abarcar minha dor de não tê-la conhecido mais e melhor antes. Um abraço com sabor de vento entre células, até ela se enfurecer e partir sem olhar pra trás.

Ou talvez um abraço mais curto pra esticar o tempo da sua mansidão, um diálogo simples, com tempo pro seu cigarro, sim Clarice fumava e muito! Com tempo pra ofertar flores uma de cada vez.

Mas Clarice me ronda, me estimula, diria até que me entende e porque me compreende e por compreender me tem nas mãos de sua poesia, feito letra e verso fora da entrelinha, esmagados sobre as lentes em cada leitura.

Clarice me seria, mais uma tia perfeita. A tia dos nobres e vigorosos contos, das fadas à dura realidade em seus mundos úmidos de frescor, escrevente nas madrugadas e ao amanhecer. Escrevia-se.

Tinha seu próprio conjunto de mágicos poderes, e tanto assim, que voará, voará para que não mais a alcancem, o sofrer abriu as portas também da felicidade. Um tempo de assombros, sussurros e gestos cálidos, um quase tempo de alcance, para uma escritora única.

Clarice, aqui te bendigo, seja bem vinda em nós humanos em crescimento. Minhas saudações, com grandes saudades,


Elaine.
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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

:: o menino que atravessava paredes ::

(imagem: internet)

Um texto antigo, para contemplar a imaginação nossa de cada dia, escrito para uma memória em minha vida, para um amigo nascido em Paranapiacaba: onde estiver Marcos, este é teu!

 
... o menino que atravessava paredes !




Imaginou o lugar né?
 
Denso, casa pequena porta destrancada, Maria sem-vergonhas com a cabeça para fora, no jardim, pedras redondas roladas pelo caminho faziam a trilha do portão à casa. Uma cortina de renda branca com laço de fita amarelo, centrada, vidraças fechadas.

Com a neblina também vem o frio e o misterioso mistério.
 
A sala tem chão polido, conforto e samambaia de metro com a cadeira de balanço embaixo... a tia diz que é pra facilitar a dormida. Acho que a samambaia faz carinho enquanto a gente dorme.

Tem imagem do Sagrado Coração, tem cidreira benzida, tem copo de vidro emborcado e pimenta curtida, tudo exposto ali, para proteção.

No canto tem duas portas, dois quartos se abrem em paralelo. Num tem cama de gente grande, com penteadeira e espelho, vaso com margaridinha e flores do campo, guarda roupa com cabides barulhando e porta rangendo, dois tapetes isolados que aquecem os mesmos pés pela manhã, colcha de fita larga e crochê, o quarto exala lavanda, no cantinho uma cadeira antiga entalhada, da janela vejo o mundo com neblina e sons, é uma viagem na alma do tempo.

No outro, tem cama de criança, colcha de retalhos bem feita, bola de capotão num canto, pendurado no teto, balança aquele 14 Bis de madeira que o tio deu, no chão polido e atapetado a caixa de lápis de cor, muitos tons e formas sobre as folhas soltas, o caderno todo desmembrado, mesmo contra a vontade da mãe, junto aos lápis os soldadinhos de chumbo e a bailarina, o carrinho de lata, um mundo de rei e herói, de damas e fadas, de floresta encantada, onde o ar frio venta pela fresta da janela entreaberta.
 
A bruma lentamente toma seu espaço, vai ocupando, invadindo o mundo do menino, penetrando nas paredes, no movimento do avião, no tecido da colcha, no brilho do chão polido, no pó do lápis de cor, no branco das folhas de desenho, na cabine do carrinho de lata, intervém no espaço tempo, cria uma dimensão suspensa, a bailarina submerge, os soldados perfilam-se, tudo depreende sentimento, dos desenhos elevam-se os castelos, as árvores, os cavalos e cavaleiros, a alma do menino ganha o mundo, a vida do menino é ascensa, transpõe.
 
Ele vence o mundo e as paredes.
Só a bola de capotão num canto chora pela volta das chuteiras que lhe dão vida.
 
Elaine
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